A fotografia de retrato e o corpo.
O retrato e o corpo são temas fascinantes na fotografia, pois o corpo humano é um elemento de ficção que é construído e está vinculado à nossa identidade. O corpo é sede de processos culturais, sociais, psicológicos e também está sujeito a normas de beleza impostas por políticas sanitárias, econômicas e jurídicas.
A história da fotografia nos permite explorar diferentes representações do corpo ao longo do tempo.
No século XIX, as fotografias buscavam uma representação icônica e literal do corpo, inspiradas na pintura. Também foram tiradas fotografias de pessoas “exóticas”, anormais ou diferentes, bem como registros médicos. Era a época do empirismo onde a fotografia se apresentava como testeminha cientifica e prova documental das coisas que aparecem nos livros.
É interessante destacar que em esta mesma época, enquanto os cientistas utilizavam a fotografia para seus livros como prova documental, os bandidos e timadores utilizavam truques e fotomontagens feitos a partir de técnicas no revelado para criar imagens de fantasmas e aparecidos, com os quais tiravam dinheiro das pessoas, documentando assim a suas dividosas capacidades de contatar aos mortos.
Num livro sobre técnicas fotográficas, escrito por Walter Woodbury em 1896, é explicado como conseguir o famoso ‘efeito fantasma’:
“É muito fácil fazer imagens de fantasmas bastante convincentes… Primeiro precisamos preparar nosso ‘fantasma’ vestindo alguém em um lençol branco. Em seguida, colocamos o modelo e o fantasma nas atitudes apropriadas e damos parte da exposição necessária. Então, deixando tudo como está, removemos o fantasma e completamos a exposição. Revelando o filme, encontramos o modelo e o fundo corretamente expostos e apenas uma imagem bastante esmaecida do fantasma, com objetos atrás aparecendo através da dupla exposição.”
Foto: O fantasma da babá, Roger Fenton
Início do século XX
No início do século XX, a fotografia foi influenciada pelas vanguardas artísticas e refletiu eventos como a guerra, a revolução russa e o novo status da mulher. A moda e o cinema também tiveram uma grande influência nessa época.
A fotografia foi profundamente influenciada pelas vanguardas artísticas e refletiu uma série de eventos históricos significativos, como a guerra, a revolução russa e as mudanças no status da mulher.
As vanguardas artísticas, movimentos culturais e intelectuais que surgiram no início do século XX, tiveram um impacto notável na fotografia. Artistas e fotógrafos exploraram novas formas de expressão visual, rompendo com as convenções artísticas tradicionais. Movimentos como o Cubismo, o Surrealismo, o Futurismo e o Construtivismo tiveram influência direta na fotografia, desafiando as noções convencionais de representação e perspectiva.
Esses movimentos vanguardistas buscavam capturar a essência da modernidade e muitas vezes enfatizavam a fragmentação, a abstração e a experimentação. Na fotografia, isso se traduziu em técnicas inovadoras, como o uso de ângulos incomuns, composições assimétricas, sobreposições e colagens. Os fotógrafos procuravam transmitir uma nova maneira de ver o mundo, refletindo os avanços tecnológicos e sociais da época.
Além das influências artísticas, a fotografia também desempenhou um papel fundamental na documentação de eventos históricos marcantes do início do século XX. A Primeira Guerra Mundial foi um dos eventos mais impactantes da época, e a fotografia desempenhou um papel importante na divulgação das atrocidades e do sofrimento vivenciado durante o conflito. Fotógrafos como Robert Capa e Ernst Friedrich registraram imagens poderosas de batalhas, feridos e destruição, trazendo a realidade da guerra para o público em geral.
A revolução russa de 1917 também foi um marco histórico que influenciou a fotografia. A ascensão do regime soviético trouxe consigo uma nova visão de mundo e uma abordagem inovadora para a fotografia. A fotomontagem, por exemplo, foi amplamente utilizada como uma forma de propaganda política, combinando imagens e texto para transmitir mensagens ideológicas.
Além disso, a mudança no status da mulher também foi refletida na fotografia do início do século XX. Com o movimento sufragista e a luta pela igualdade de gênero, a fotografia tornou-se uma ferramenta para retratar a mulher de maneira mais independente e autônoma. Fotógrafas pioneiras, como Gertrude Käsebier e Imogen Cunningham, desafiaram as expectativas sociais ao retratar mulheres em papéis não tradicionais, como profissionais, artistas e líderes.
Essas mudanças na fotografia refletiram transformações mais amplas na sociedade e na cultura durante o início do século XX. Através da experimentação artística, da documentação histórica e da representação da mudança no papel da mulher, a fotografia se estabeleceu como uma forma de expressão poderosa e influente, capturando os desafios e as transformações da época.
Neste momento, a atitude do corpo na fotografia está relacionada ao papel do indivíduo na sociedade, sua posição social e cultural. Fotógrafos como André Kertész e Imogen Cunningham exploraram a atitude do corpo em suas obras.
A pós-guerra até os anos 60
Desde o pós-guerra até os anos 60, o corpo na fotografia tornou-se um tema social e político complexo. Durante esse período, os fotógrafos exploraram uma variedade de abordagens para abordar questões relacionadas aos direitos, às liberdades, ao sofrimento e às nuances do corpo humano. Além disso, também houve uma ênfase no fetiche e na erótica da perversão, em alguns contextos artísticos e culturais.
Após a Segunda Guerra Mundial, o mundo testemunhou uma série de mudanças sociais, políticas e culturais. A fotografia emergiu como uma forma de expressão que permitia aos artistas explorar e questionar as normas estabelecidas, incluindo as relações entre o corpo e a sociedade. Fotógrafos como Diane Arbus e Robert Frank adotaram uma abordagem documental e capturaram imagens que revelavam a diversidade e a complexidade do corpo humano em suas formas mais autênticas. Eles retrataram pessoas marginalizadas, explorando temas de identidade, diferença, exclusão e sofrimento, com o objetivo de aumentar a conscientização e promover a empatia.
Paralelamente, uma parte da fotografia também começou a explorar o corpo como objeto de desejo, prazer e erotismo. Esse interesse na sensualidade e na sexualidade humana fez parte de um movimento mais amplo de liberação sexual e da crescente tolerância em relação a temas antes considerados tabus. Fotógrafos como Helmut Newton e Robert Mapplethorpe desafiaram as convenções sociais ao explorar o corpo nu, o fetichismo e a perversão em suas obras. Suas fotografias provocativas e muitas vezes controversas estimularam discussões sobre a liberdade de expressão, os limites da representação e a relação entre arte e obscenidade.
Nesse contexto, a fotografia proporcionou um meio poderoso para examinar questões sociais e políticas relacionadas aos direitos e às liberdades individuais. A representação do corpo na fotografia destacou as lutas pela igualdade de gênero, os direitos civis e as questões de identidade. Fotógrafos ativistas, como Graciela Iturbide e Ana Mendieta, abordaram questões de gênero, raça e etnia em suas obras, desafiando as normas e lutando por mudanças sociais.
No entanto, é importante ressaltar que o foco no fetiche e na erótica da perversão foi uma vertente específica da fotografia e nem sempre representou a totalidade das abordagens fotográficas da época. Enquanto alguns artistas exploravam esses temas para desafiar tabus e reprimir normas sociais, outros se concentravam em questões mais amplas de justiça social, direitos humanos e empoderamento.
Nestes anos, o corpo voltou a ser objeto e sujeito da arte. Fotógrafos como Nan Goldin exploraram temas como o prazer, o desejo e a própria vida.
Em suma, o período do pós-guerra até os anos 60 foi marcado por uma diversidade de abordagens em relação ao corpo na fotografia. Enquanto alguns fotógrafos documentavam a realidade humana, explorando questões sociais e políticas, outros enfatizavam a sensualidade e a sexualidade como um meio de desafiar as convenções e abrir espaço para a expressão pessoal e artística. Ambas as abordagens contribuíram para ampliar os horizontes da fotografia e estimular discussões importantes sobre a condição humana, as liberdades individuais e a representação visual.
Os anos 80
Nos anos 80, houve uma influência significativa da estética neoclássica e da pintura na fotografia, especialmente na fotografia de retratos e no estudo do corpo humano. Fotógrafos franceses como Jeanloup Sieff e David Hamilton se destacaram nesse período, trazendo uma abordagem distintiva que combinava elementos da tradição clássica com a estética contemporânea.
A estética neoclássica, que remonta à arte greco-romana e ao Renascimento, enfatiza a busca pela perfeição formal, a proporção harmoniosa e a busca pela beleza idealizada. Essa estética foi reinterpretada pelos fotógrafos dos anos 80, que procuraram criar imagens que evocassem a serenidade e a atemporalidade das obras de arte clássicas. Jeanloup Sieff, por exemplo, era conhecido por suas composições elegantes e seu uso magistral da luz, criando imagens que lembravam as pinturas de mestres como Leonardo da Vinci e Michelangelo.
Outro fotógrafo notável desse período, David Hamilton, foi conhecido por sua estética romântica e sonhadora, que remetia à pintura do século XIX. Suas fotografias muitas vezes apresentavam uma atmosfera suave e etérea, com uma paleta de cores suaves e uma abordagem suave à representação do corpo humano. Hamilton explorava a beleza juvenil e a inocência, evocando uma sensação de nostalgia e lirismo em suas imagens.
Além da influência da estética neoclássica e da pintura, a fotografia do corpo nos anos 80 também explorou temas contemporâneos relacionados à singularidade, diversidade, gênero e beleza. Nesse período, os fotógrafos começaram a desafiar as normas tradicionais de representação do corpo, ampliando a diversidade de corpos representados e desafiando padrões estereotipados de beleza.
A fotografia do corpo contemporâneo nos anos 80 abriu espaço para a representação de diferentes tipos de corpos, incluindo aqueles que não se enquadravam nos padrões tradicionais de beleza estabelecidos pela mídia e pela sociedade. Fotógrafos como Nan Goldin e Robert Mapplethorpe exploraram questões de identidade, gênero e sexualidade em suas obras, desafiando normas sociais e promovendo uma representação mais inclusiva e diversa do corpo.
Essa nova abordagem na fotografia do corpo refletiu as mudanças culturais e sociais que ocorreram durante os anos 80. Foi um momento em que o movimento pelos direitos das mulheres, a luta pelos direitos LGBTQ+ e a busca por uma maior aceitação e representação da diversidade ganharam destaque. A fotografia desempenhou um papel fundamental na ampliação dessas vozes e na promoção de uma maior consciência e aceitação das diferentes experiências corporais.
Em suma, nos anos 80, a fotografia foi influenciada pela estética neoclássica e pela pintura, trazendo uma abordagem sofisticada e atemporal para a representação do corpo humano. Ao mesmo tempo, os fotógrafos contemporâneos exploraram temas de singularidade, diversidade, gênero e beleza, desafiando as normas estabelecidas e promovendo uma representação mais inclusiva e diversa do corpo na arte fotográfica.
Nesta fotografia do corpo contemporâneo, são explorados temas de singularidade, diversidade, gênero e beleza. Os retratos do corpo abordam o singular e único, o bizarro, o queer e o estranho.
Os anos 90
Nos anos 90, a fotografia passou a explorar a encenação de maneira dramática e surrealista, buscando inspiração no cinema comercial e nas superproduções. Durante essa época, fotógrafos renomados como Madonna, David LaChapelle e Pierre and Gilles se destacaram por suas abordagens criativas e ousadas, que misturaram elementos da cultura pop, do glamour e da fantasia.
A encenação na fotografia dos anos 90 permitiu aos fotógrafos criar narrativas visuais impactantes, muitas vezes com um toque de surrealismo. Inspirados pelo cinema e pelas superproduções, eles exploraram cenários extravagantes, figurinos elaborados e efeitos especiais, resultando em imagens altamente estilizadas e memoráveis.
Madonna, além de ser uma das maiores artistas musicais da época, também se aventurou no mundo da fotografia. Suas imagens icônicas, muitas vezes autorretratos, apresentavam elementos teatrais, simbolismo e uma ousadia provocativa. Madonna utilizou a fotografia como uma extensão de sua expressão artística, explorando temas de identidade, sexualidade e poder.
David LaChapelle foi outro fotógrafo que se destacou nos anos 90 com suas imagens vibrantes e surreais. Ele combinou elementos da cultura pop, da moda e da arte contemporânea em suas fotografias, criando composições visualmente impactantes e repletas de simbolismo. Seu estilo único, muitas vezes descrito como hiper-realismo pop, capturava a atenção do espectador e abordava questões sociais e políticas de forma provocativa e satírica.
Pierre and Gilles, uma dupla de artistas franceses, também ganharam destaque na fotografia dos anos 90. Seu trabalho se caracterizava por fotografias que eram posteriormente pintadas à mão, resultando em imagens com um toque de fantasia e sonho. Suas composições muitas vezes retratavam figuras da cultura pop, como músicos e celebridades, em cenários elaborados e coloridos, criando um mundo mágico e sedutor.
Esses fotógrafos dos anos 90 exploraram o potencial narrativo e estético da fotografia, utilizando a encenação para criar imagens que se assemelhavam a cenas de filmes e peças teatrais. Eles aproveitaram os avanços tecnológicos e as possibilidades criativas para construir narrativas visuais ricas em simbolismo, intensidade emocional e elementos fantásticos.
Além disso, esses fotógrafos também contribuíram para a expansão do campo da fotografia como uma forma de arte, desafiando as convenções e explorando novos territórios estéticos. Suas obras influenciaram gerações posteriores de fotógrafos e tiveram um impacto significativo no mundo da cultura visual contemporânea.
Em resumo, nos anos 90, a fotografia utilizou a encenação de maneira dramática e surrealista, inspirada no cinema comercial e nas superproduções. Fotógrafos como Madonna, David LaChapelle e Pierre and Gilles se destacaram por suas abordagens criativas e ousadas, que combinavam elementos da cultura pop, do glamour e da fantasia, resultando em imagens memoráveis e cheias de impacto visual.
O novo milênio
No novo milênio, houve uma mudança significativa no cenário da fotografia criativa, com os países não centrais, como América Latina, Rússia, China, Ucrânia e Turquia, emergindo como protagonistas e impulsionadores da produção de imagens provocadoras e inovadoras. Enquanto isso, os países centrais, que antes dominavam o campo da fotografia, tornaram-se mais consumidores do que produtores dessas imagens.
Essa mudança de paradigma reflete uma transformação mais ampla na geopolítica global e no cenário artístico. Durante muito tempo, os países centrais, como os Estados Unidos, a França, a Alemanha e o Reino Unido, foram considerados os principais produtores e influenciadores da fotografia. Suas escolas, movimentos e fotógrafos estabelecidos dominaram a cena, definindo tendências e estilos.
No entanto, no início do novo milênio, a democratização da tecnologia e a maior conectividade global abriram caminho para uma maior diversidade e descentralização da produção fotográfica. Os países não centrais passaram a ter maior acesso aos recursos tecnológicos, às plataformas de exposição e à formação artística, permitindo que suas vozes e perspectivas fossem amplamente divulgadas.
Esses países não centrais trouxeram consigo experiências culturais e sociais distintas, que se refletiram em suas abordagens criativas na fotografia. Por exemplo, a América Latina trouxe uma rica tradição de fotografia documental, abordando questões de identidade, desigualdade social e história política. Fotógrafos como Graciela Iturbide e Sebastião Salgado exploraram as realidades complexas da região e tiveram um impacto significativo na fotografia contemporânea.
Da mesma forma, a Rússia, a China, a Ucrânia e a Turquia também trouxeram perspectivas únicas e inovadoras para a fotografia. Esses países abordaram questões culturais, políticas e sociais específicas de suas realidades, desafiando as narrativas predominantes e revelando histórias e visões que muitas vezes eram negligenciadas pelos países centrais.
Enquanto isso, os países centrais passaram a consumir e valorizar cada vez mais as produções fotográficas desses países não centrais. Eles reconheceram a importância de diversificar suas fontes de inspiração e entender as experiências de outras culturas. A fotografia desses países não centrais desafiou as normas estabelecidas e ofereceu novas perspectivas, enriquecendo o diálogo global sobre arte e sociedade.
Essa mudança também foi impulsionada pelo poder da internet e das mídias sociais, que permitiram que as imagens viajassem instantaneamente pelo mundo, alcançando um público global. As plataformas online se tornaram espaços de exposição e compartilhamento, facilitando o alcance das produções fotográficas dos países não centrais a um público amplo e diversificado.
No novo milênio, os países não centrais, como América Latina, Rússia, China, Ucrânia e Turquia, se tornaram protagonistas da fotografia criativa
Em resumo, a fotografia do retrato e do corpo evoluiu ao longo da história, refletindo mudanças sociais, políticas e culturais. Desde a representação icônica do século XIX até a exploração da diversidade e singularidade na atualidade, a fotografia nos permite refletir sobre a beleza, as normas sociais e nossas identidades por meio do corpo.